De Pianista a Técnico de Som
Duas Formas de Preparar o Caminho para Deus no Som
Há uma memória viva nos meus dedos, uma memória que acorda sempre que penso na Aria que abre as Variações Goldberg de Johann Sebastian Bach, BWV 988. Aquelas notas foram companheiras dos meus anos de estudo de piano, uma paisagem sonora que explorei vezes sem conta sob a orientação do meu professor, e que agora se entrelaça com aquele sentir mais profundo que descrevi.
Há momentos em que, ao pousar os dedos sobre as teclas do piano, sinto mais do que um som, um timbre, uma vibração. Cada nota parece ser um fio invisível que me liga a Ele. Essa sensação era intensa ao abordar a simplicidade aparente da Aria de Bach. Ela começa com uma serenidade quase ingénua, uma linha melódica que flutua calma e graciosa sobre um baixo que desce passo a passo, firme como um coração a bater, um fundamento constante como a própria fé. Essa melodia não grita, não se impõe. Ela convida à escuta íntima, à interiorização. Ela fala numa voz baixa, mas que ressoa fundo na alma, como um segredo guardado ou uma prece sussurrada.
Ao interpretá-la, sentia como se cada frase musical, cada pequena inflexão, fosse um convite a inclinar-me também, como se o céu de facto se inclinasse através daquela beleza despojada para tocar a terra. No silêncio do palco, entre ajustes de microfones e botões, percebo que até a técnica pode ser um Dom. E estudar Bach é mergulhar nessa verdade. A aparente simplicidade da Aria esconde uma construção de precisão matemática, uma arquitetura sonora perfeita onde cada nota, cada intervalo, tem o seu lugar exato. Essa técnica imensa de Bach não é um exibicionismo vazio, pelo contrário, ela é o servo invisível. Ela serve a beleza pura, permite que essa beleza atinja quem a ouve de forma direta e comovedora, como se estivéssemos a preparar um altar invisível onde cada nota se torna numa oferenda. A relação entre a minha área de Técnico de Som, e da Aria, é a humilde serva que limpa o caminho para que a essência, o sentimento, a ligação com o Divino, possa brilhar sem obstáculos.
A cultura, com toda a sua diversidade de sons e expressões, é também um lugar de confissão. E a Aria de Bach é um desses cantos universais, uma melodia que transcende o seu tempo, para falar a qualquer coração atento, como os louvores com os ritmos das comunidades ou as melodias de terras distantes que já ouvi. Deus não fala apenas na linguagem litúrgica. Ele também se manifesta nas batidas simples do quotidiano. E a Aria é precisamente isso, uma batida do coração musical, simples, profunda, quotidiana na sua capacidade de tocar o eterno. Quando esses sons se unem ao louvor, tornam-se sinais vivos da fé, e a Aria é um desses sinais eternos.
A música não precisa ser complexa para ser profunda. E a Aria é o testemunho divino disso. Quantas vezes uma singela melodia como esta, um acorde suave ou um silêncio bem colocado, dizem mais do que palavras? A beleza da fé está justamente nessa simplicidade que toca, consola e transforma. É assim que também as crianças, com seu coração puro, intuem a presença de Deus, tal como a pureza límpida desta melodia de Bach parece intuir e revelar o sagrado.
Somos chamados a servir com os dons que recebemos. E no meu caso, seja nos dedos que outrora percorriam as Variações de Goldberg, seja agora na mesa de som, eu entendo que o meu papel é servir com os dons que recebi. É criar o espaço e o ambiente certo, pra que Deus possa falar através da música, seja na escolha do timbre, seja no equilíbrio do som. Cada ajuste técnico que faço pode ser uma oração. Cada cuidado com o som pode ser um ato de amor. E que ao final de cada canção, quem escuta sinta-se envolvido pelo abraço do Pai. Porque a fé também se revela nos sons mais delicados, como cada nota preciosa da Aria de Bach, e no silêncio que prepara o encontro com Ele. Um silêncio que a própria música de Bach sabe evocar e preencher com a sua presença subtil.